26 de janeiro de 2009

Caleidoscópio do absurdo

No horizonte, nascia uma manhã de Quarta-feira com o aroma verde do campo. O Outono balançava suas folhas amareladas enquanto o Sol evitava arrepios suntuosos. Ao lado da cama, café e torradas fresquinhas com manteiga derretida. Presente de uma mãe presente. Ainda me espreguiçando, ouvia o cantarolar do meu pai no chuveiro. O regozijo matinal abraçava todos.

Levantei-me após o modesto banquete e escovei os dentes com a pasta azul do comercial refrescante. Branquinho, o espelho sorri. No banho, era um animal no rio. Sequei-me no bege da toalha que combinava com o banheiro. Não tinha hora para chegar ao meu destino. Arrumei minhas coisas sem pressa e fui para o laboratório próximo de casa. Exame de rotina. Nada demais. No percurso, encontrei o porteiro do meu edifício e o jornaleiro da banca da esquina. Os "Bom-dias" foram calorosos e a discussão quase filosófica sobre quem deveria ser o atacante titular do meu time de coração não me atrasou. Não tinha hora. Decidido sobre o goleador, segui em frente acompanhado pelos sustenidos dos sabiás.

Cheguei ao tal laboratório e o tecido de fábula, que mal começou a ser costurado, rompeu-se. Ao atravessar a  cinzenta porta, ouvi o silêncio dos passarinhos. Só se escutava a confusão entre o som da TV e do rádio ambiente. Ao primeiro passo, vi um artefato metálico de onde brotaria minha senha. Nem um "bom-dia" ele me deu. Aguardando alguma atenção, desdenharam-me. Quem esperava nos assentos próximos me relançava olhares, oferecia-me migalhas, mas, mal piscava os olhos, não me deixavam comer. Fingiam que não era com eles. Certamente achavam melhor se fechar às palavras que se dar ao luxo de arriscar. O quê? Por quê? Não sei. Nem eles, talvez. Só sei que não se sujeitavam à possibilidade de apostar algumas fichas verbais. Aquelas pálpebras pálidas preferiam se calar. Alguns minutos se passaram e meus números piscaram no letreiro eletrônico. Era a minha vez. Esperançoso, coloquei-me frente a frente com a atendente.

- Seus documentos, por favor.
Àquela altura, o “por favor” já me impressionara. Infelizmente, porém, foi sem querer. Automático, o termo fazia parte do jargão politicamente correto que corre por aí. Sem as palavrinhas mágicas, ficaria feio para a instituição em que trabalhava, seria falta de educação, além de não ser moralmente direito. Esquerdo, repliquei incontido:

- Bom dia! Manhã bonita, não?

Pelo visto não. Não obtive resposta. Seus olhos negros já se combinavam aos dedos velozes que internalizavam meus dados no sistema.

- Pode se sentar ali, já vamos chamar o senhor (Aí o jargão de novo. Tenho vinte e poucos anos, com a maior cara de moleque, e a atendente me chamando de senhor. Pode?).
Obediente, segui para o local indicado. Amoldando-me àquela situação, assistia a TV de espera quando, sem mais nem menos, senti meu sangue correr de novo. Do interior da sala aparece uma senhora de uns quarenta e poucos anos, com uma roupa avermelhada toda estampada (um colorido moderno buffet self-service – que têm de tudo um pouco), cheia de veias reclamando a salivadas que não podia mais esperar, que tinha que trabalhar e que aquilo tudo era um absurdo.

Um pequeno parêntesis: Por que tudo que contradiz a opinião das pessoas é um absurdo? As pessoas não concordam com algo e pronto. Lá vai o “absurdo” arrotado pelos ares. O “absurdo” é cabível quando achamos que algo está errado, mas, por Deus, usá-lo em todas as vezes já é demais! Veja, por exemplo, o caso da dondoca cafona.

- É um absurdo que só tenha uma enfermeira atendendo! Pago por um atendimento rápido. Vocês vão pagar meu táxi para o trabalho e vão escrever uma carta justificando o atraso ao meu chefe! É um absurdo um laboratório deixar a cargo de apenas um funcionário o que deveria ser incumbência de, pelo menos, uns três! Que absurdo, gente!

Repetida e veementemente, abusou do “absurdo”. Já adianto que não entro no mérito se ela estava certa ou não. Tal julgamento não cabe a mim. No entanto, minha senhora, mude o disco. “Que ultraje!”, “Que disparate!”, “Que afronta!”, sei lá! Qualquer reclamação, menos “Que absurdo!”. Até o texto ficou mais pobre com as letras dessa expressãozinha insistente.

Observo o silêncio constrangido das atendentes. A mulher desvairada completa:

- Quer saber? Vou entrar!

E entra. Passa pelos limites tacitamente estabelecidos e se mete laboratório adentro. Nesse momento, aquelas faces de peixe morto ganharam vida. Receberam um motivo para puxar assunto: o absurdo. Aí foi um “Deus-nos-acuda”, um reboliço geral. Era um a favor da senhora carnavalesca, outro contra e mais uns três em cima do muro. Enfim, a reunião de verbetes acompanhados de olhos pupilantes culminava sempre na expressão das expressões para esse tipo de situação... Não, você já sabe.

Alguns segundos se passam e a nossa Sra. Absurdo está de volta. Ainda injuriada, enquadrou-se na cadeira. O local ganhou um tempero quente embora fosse impossível mudar muito a morbidez ambiente. É mais um absurdo pra lá, outro pra cá. Até o país não vai para frente devido àquela situação.

Nesse ínterim, ninguém notou a paciente que saiu da cabine após longo período de exame. As pessoas, efervescentes, tampouco observaram que o chapéu negro escondia a careca de uma moça que devia ter a mesma idade que eu. Câncer, imagino. Entendi o porquê da demora.

A senhorita caminhou até a saída de mãos dadas com a mãe. Retirou-se do recinto com a discrição que lhe conferiram. Porta afora, a agradável manhã lhe encheu os pulmões. Seus olhos de mel refletiram as tonalidades frutíferas ao seu redor. Ao se virar, sutilmente curvou os lábios me presenteando com um sorriso singelo e distraído. Cobicei-o, mas me alegrei por, ao menos, tê-lo visto revolto por todas aquelas cores.

A porta se fechou. E, ali, dela teriam pena. Presumiriam que ela os invejava.