10 de março de 2011

Chaplin em tela

Escolhida tão aleatoriamente quanto qualquer história pode ser, esta é a fábula de um menino sonhador. Pobre, órfão e, também por isso, sonhador. Vivia com seus avós, jogava bola de meia, dormia com os anjos, mas na escola era educado para ser um escravo. E, talvez por isso, não queria crescer. Desconfiava instintivamente que perderia sua tão preciosa visão de mundo.
Desde pequeno, gostava de desenhar e pintar suas obras de arte. Queria colorir toda página vazia com cores indistintamente espalhadas, escolhidas a dedo. Via os desenhos animados coloridos certinhos com todas as cores dentro das linhas e, embora se divertisse com eles, não compreendia porque seus rabiscos desformes não eram tão apreciados.
- Todos deveriam colorir como eu! – dizia, inconformado porque ninguém lhe dava bola. Sua vó, porém, muito atenciosa, elogiava os traços e as cores misturadas do neto como ninguém o fazia. Contudo, com aquele sorriso tênue e cansado de muita vida pesando nas costas e nas juntas, ela o advertia que havia muita beleza também dentro das linhas e até mesmo em linhas sem cor, pretas ou brancas.
O menino, deslumbrado demais com o mundo ao seu redor para se satisfazer com duas míseras cores, retrucou a sábia senhora insistindo que as linhas pretas, na imensidão do papel branco, limitavam os desenhos e as próprias cores, libertinas por natureza, prendendo-as em clausuras vazias de beleza.
Sem tirar a meia lua da boca, a avó sentou o guri em frente à TV, ligou o vídeo e lhe apresentou as aventuras de Charlie Chaplin. Ela se acomodou ao seu lado e ambos assistiram, às gargalhadas, as travessuras do velho palhaço. Tudo naquela linda escala cinzenta dos filmes de outrora.

Enquanto isso, a noite se alastrou pela sala e empurrou as cortinas dos olhos do menino que, apesar de relutante, cedeu aos encantos dos sonhos e do aconchego da barriga macia de sua avó. Esta, por sua vez, pegou-o no colo, aninhou-o na cama, beijou-lhe a testa e deixou o quarto, realizando como ninguém o papel materno que lhe fora entregue mais uma vez pela vida.
Como o cobertor que o cobria, a noite envolveu o menino nos seus próprios sonhos. Pouco tempo depois de ter caído no sono, como num toque de mágica, ele acordou com os aplausos da plateia e a certeza de que podia brincar com as cores dentro e fora das linhas. Acordado, ele sonhou com o velho palhaço, pintando uma lua minguante em sua janela. Mas não era uma lua comum. A lua-sorriso engolia a noite, enquanto Chaplin as pintava ambas, a lua e a noite, de preto, numa tela branca.