31 de outubro de 2011

A criança


Dócil, juntou as mãos e as enlaçou sobre as pernas que descansavam no banquinho. Ligeira, soprou os cachos angelicais que lhe atrapalhavam visão. Respirava devagar enquanto seus ombros faziam um leve arco fechado, como se guardassem no peito um segredo que tivessem que proteger discretamente. “Fica paradinha”. E sentada ficou a obedecer ao fotógrafo.

Suas bochechas de neve amaciavam seu rosto sereno. Desmascarada – pois sua pouca idade ainda jubilava a mais pura inocência – sua boca não sorria nem chorava. Silenciava eloquentemente a “falta de expressão” da Monalisa. Com seus lábios cerrados, emudecia o mundo inteiro. Trazia naquela pequena boca exprimida entre meias maçãs a solução para todos os problemas do mundo.

Entre a boca e o nariz, um anjo lhe havia tocado a existência com o dedo indicador.

O pequeno nariz indicava como uma seta o caminho dos olhos. Neles boiavam duas grandes jabuticabas, quase imersas naquelas duas elipses leitosas. Embora mais preciosos que duas pérolas negras, seus olhos eram resguardados apenas por sobrancelhas pouco abauladas. Eles nada diziam. Não perguntavam nem respondiam, apenas sabiam. Sabiam de tudo aqueles espelhos negros e redondos. Não pesavam por noites mal dormidas nem pelas lágrimas intermitentes dos anos de vivência. Infantis, apenas miravam com uma tranquilidade incontrolável a lente que os capturava.

À espera da minha vez de tirar uma foto três por quatro, eu apenas observava aquela criança. De relance, ela escapou do convexo da máquina para me encontrar encarando-a. Sem querer, retribuí àquele jovem olhar inescrupuloso com vergonha e nostalgia. Vergonha porque hoje minha vista está cansada demais. Já a nostalgia me tomou pela saudade daquela paz singela que um dia tivera. Ela sorriu rapidamente e voltou, incólume, à câmera.

Talvez aquela criança quisesse me dizer algo, fora de qualquer tempo ou espaço que nos separasse. Nela eu via meu passado, mas ela, em mim, não via seu futuro. Talvez ela soubesse, naquele momento, muito mais do que eu sei agora. Ou talvez estivesse apenas imaginando coisas. Mas uma coisa é certa: ontem, meu coração pulsava com a terna certeza da eterna juventude; hoje, minha tenra juventude pulsa com a eterna incerteza do meu coração.

8 de outubro de 2011

Das inspirações

O trompete de Miles Davis. O gole de uísque macio por uma prévia água gelada. O bom samba, gentilmente nostálgico, salgado com lágrimas à gosto. A cerveja encorpada, cremosa e frutada, que faz cócegas no fundo da boca. O sexo, drogas e rock and roll até tarde da noite. O som silenciador da vitrola. O chocolate quente no frio de montanha. O sussurro do mar no fim da madrugada, quebrando nas pedras. A água de coco no calor de quarenta. O primeiro atrito da massa al dente com os dentes. O cheiro de terra molhada de chuva. A pimenta que não arde demais nem de menos. O café preto da tarde. O pão francês com mortadela. O bolo saindo do forno, com perfume percorrendo a casa toda, como em desenho animado. O frango assado de padaria.

A alegre e atabalhoada falta de escrúpulos de seu cachorro ao te ver. A moleza independente e pidona do seu gato manhoso. A amizade – só a verdadeira – e sua inerente sinceridade. O ombro amigo. O abraço do avô. O bobó de camarão da avó. As mãos protetoras do pai. Os carinhos eternamente pacientes da mãe. O sapato de passos familiares no corredor. O primeiro luar. O olhar que paquera entre cegos. O beijo que mata a sede. A vontade insolúvel que quase enlouquece. A maciez pueril do encontro das bochechas de um só amor, deitados na cama. O aroma da pele de quem se ama. O sonho bom. O aconchego exasperado daquele sono fugaz quinze minutinhos atrasado após o despertador.

O petardo que estufa as redes. A força transgressora que ultrapassa a lei injusta. A cesta de chuá no último segundo. A luta do imoral contra a amoralidade que o cerca. A oração intempestiva, mas que não falha. A bola do jogo que cai na linha. O milagre da fé revestido na paixão camaleoa – da alegria à tristeza – por uma religião, um time, um partido, enfim, uma crença convicta, conjunta e utópica. As utopias. Ah, as utopias... A liberdade. O sentido da vida. Viver mais do que este sentido te traz; por tudo que sentes e por tudo que não sabes. Sempre fazer mais do que já foi feito. E poder sonhar com o brilho nos olhos de uma criança imediatamente antes e imediatamente depois de abrir um presente. Um, pela esperança corajosa enfrentando todas as incertezas, e o outro, pela surpresa certa e expansiva, da mais pura felicidade. Mais? Uma boa leitura.

1 de outubro de 2011

Caneta mágica


Com uma caixa de papelão nos braços e um sorriso de janela, um homem acena. O ônibus para. O homem sobe pela porta de trás sem pagar. Vai para frente do ônibus recordando o texto programado e começa o discurso conhecido pelo inconsciente coletivo. Bom dia! Venho trazer para vocês a melhor caneta no mercado pelo melhor preço! E começa a falar sobre a qualidade do produto que oferecia ao público. Não era uma caneta qualquer. Suas linhas eram perfeitas. Sua tinta, de primeira, para todas as superfícies. E não manchava, embora marcasse para a vida até CD. Uau! Suspiraram discretos os olhos menos dispersos. E mais: tinha duas pontas, uma que escrevia fino e outra, grosso. Ou seja, servia para qualquer ocasião! Que se precisasse escrever grosso ou fino, lógico.

Sem dotes de orador, o homem sustentava-se confiante com aquele sorriso aberto, ventilado. E exaltava as inúmeras potencialidades da caneta que vendia: Ela escreve de cabeça para baixo e até mesmo debaixo d’água! Por que raios alguém precisaria escrever debaixo d’água? Certamente nenhum mergulhador estaria no ônibus às duas da tarde para a Central. Mas tudo bem. Afinal, quem contaria com uma caneta que escreve até debaixo d’água em plena segunda-feira? Era quase um instrumento do Divino, que sobre as águas andara. Só que, dessa vez, seria sob as águas. Isso sem contar que ela já havia sido anunciada na Hebe.

Sem ressalvas, o vendedor contagiou a breve viagem com o brilho atraente de uma novidade. Por um e noventa e nove era uma ilusão tão barata que quase comprei, só para não perder a oportunidade. De tão útil mais parecia um objeto vindo de uma fábula, que escrevia de tudo que é jeito, até com o mundo todo ao contrário. Resisti. Mantive-me inerte, ignorando aquela vontadezinha resiliente de consumir. Mas alguns passageiros não foram tão fortes e cederam, aventurando-se nas peripécias da caneta mágica.

Ao meu lado, um rapaz de uns vinte e poucos anos comprou logo três. Devia ser mergulhador, vai saber. Mal as havia recebido, já retirou uma delas do invólucro plástico que a protegia e começou a riscar levemente o seu dedão para testar a validade do discurso do vendedor. De longe, pude observar seu dedo marcado. Funcionava! – diziam seus olhos, como um mergulhador que avistou um tesouro num mar sem fim. Se ela riscava o dedo num ônibus movimentado, imagine o que não fará no repouso do mar? E de ponta cabeça!? E de quimeras mil seu castelo se ergueu.

Passado o surto de vendas, o vendedor voltou ao seu posto no início do ônibus e agradeceu a todos, desejando-nos uma boa viagem. Antes de partir, dirigiu-se para o motorista e, com uma caneta em riste: Essa é pra você assinar aquele contracheque abençoado! – e deixou-a com a cobradora. Naquele momento, ele já convencera quase todos dos poderes do seu produto – menos a cobradora.

O motorista negro abriu um sorriso branco cheio de dentes e agradeceu, deixando no ar a satisfação leve que todos respiramos. O ar de um mergulho de verão. Carregando a paz do dever cumprido, o vendedor desceu na parada próxima e seguiu seu rumo, espalhando pelos ônibus do Rio a magia de suas canetas, que tinham ponta grossa e fina, escreviam debaixo d’água e já haviam aparecido na Hebe.

No sinal vermelho, o motorista – com a testa suada mas as contas em dia – voltou-se para a “simpática” cobradora: Pode ficar com a caneta para você. Ainda amarga e com certo desprezo nas feições, ela não soube ao certo como agir. Desconfiou, segurou a caneta em seu cheiro de nova e, finalmente, optou por aceitá-la, deixando-se levar pelos seus contornos azuis. Foi inevitável. A gerência áspera do dinheiro deu lugar à graça de um presente. Aquela resistência mal-encarada ruiu frente aos encantos daquela caneta mágica. O motorista puxara sua companheira para o fundo daquele oceano onde todos nós nos refrescávamos. E naquele momento, naquele ônibus, foi cristalino: todos mergulharam no mesmo sonho da caneta que escrevia debaixo d’água.

4 de setembro de 2011

Dez mil cavalos correndo na rua


Em recente entrevista perguntaram a um autor sobre sua facilidade de se comunicar com os leitores. Em resposta transversa, mas brilhante: “Eu tenho a convicção de que a maior dádiva de se escrever é a liberdade que a escrita lhe dá. Se você quiser escrever uma história sobre dez mil cavalos correndo na rua, você pode.” Pronto. Com essas poucas palavras – que sozinhas contêm, sem rédeas, tudo o que é livre – eu sorri fascinado.

Dez mil cavalos correndo na rua. Por que não vinte? – me perguntei logo de cara. Vinte cinco talvez? Cismei com vinte. Tive que ler várias vezes para aceitar que ele me acorrentou a dez. Talvez o autor soubesse que minha teimosia ia querer se libertar dos seus números fixos. Ele já havia lido, com os olhos ou com o coração, o eterno pensamento: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas o que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.” Se me obrigam a contar dez mil cavalos, enxergarei muitos, mas nunca os numerados dez mil cavalos.

Dez mil cavalos correndo na rua. Cavalos correndo na rua. Quem não pensou naquele simbolozinho amarelo e preto? Ninguém levantará a mão – E aquele que não havia pensado, agora tem não só o Cavallino Rampante estampado no olhar como também a ululante certeza de quem redescobriu os óculos na ponta do nariz. Que imagem significativa nesta nossa existência mecânica! Uma Ferrari queimando a pista, galopante, lambendo o liso asfalto com a velocidade tremulando sua longa crina rubra. Se uma já é uma quimera em alta definição, imagine dez mil.

Dez mil cavalos correndo na rua. Enfim, minha inquietude vence: em que rua? Sei que se ele especificasse a rua – como fez ao cercar dez mil cavalos – eu estaria reclamando da prisão criativa onde encarceraria minha imaginação. Ao contrário, ele falou da rua com intimidade, pois a conhecia. Contudo, ele não me deu nem um mero artigo indefinido para que eu pudesse, mediocremente, reconhecer aquela rua genérica, igual a todas as que pavimentam a minha mente quando ouço sobre uma rua qualquer. Não, não. Ele disse “na rua”. Ele sabe qual é a rua por onde correm os dez mil cavalos. E eu, por algum motivo, preciso precisá-la.

Com dez mil cavalos correndo naquela rua que só ele conhecia, Ele me deu de lambuja todas as ruas do mundo como quem dissesse: Vai, escolhe. Não era liberdade que você queria?

11 de junho de 2011

O Cortejo


Pontos de fogo reconheciam à penumbra a sua beleza. As bandejas de prata circulavam pelo salão como retrovisores numa estrada deserta. Espelhos de noites solitárias, correntes e a trabalho, passavam entre as mesas servindo-lhes os seus pedidos. Saciavam a sede dos seus pedintes como aquele primeiro gole bebido no canudo, que retarda o tempo, subindo vagarosamente até a boca. O piano e o saxofone se complementavam como pano de fundo de uma voz grave, porém serena, em doces melodias. A chama da vida mantinha-se acesa entre as velas, as bebidas e as canções daquele poético bar.

A vida noturna vinha de vento em popa até o primeiro sopro da madrugada, quando a noite prestou atenção num único evento. Entrou no recinto a mulher que meus olhos sempre sonharam ver. Ela fez sua entrada e, junto a todos os clichês do mundo, tudo parou, como num passe de mágica. Num vestidinho preto indefectível, ela cria estar discreta. Quisera! Não seria capaz de discrição alguma. Também, pudera... Com aqueles olhos, aqueles passos, e toda aquela inocência mascarada, querendo ou não, seria desejada. Se não por todos, ao menos pelos mais atentos.

Cuidei, desde logo, de não dar bandeira. Queria que ela me notasse, lógico, mas não por admirá-la de cara como todos faziam. Precisava, primeiro, fingir pouco interesse, pouca monta naquela miragem. Para ganhá-la, era preciso uma naturalidade forçada e esforçada. Forçada porque não era o que eu queria fazer, e esforçada porque era um dever homérico não demonstrar que a queria com todo o meu ser. Tudo bem. Ia segurar minhas paixões por uma boa causa. Afinal de contas, poderia ganhar aquela mulher que tinha olhos de cinema. Contra tudo e contra todos, fingia mesmo que nem era comigo.

Como num filme, ela se sentou no bar e, com a sutileza de uma dama que não devia nada a ninguém, pediu uma taça de vinho. Acomodou-se até, em alguns minutos, sentir-se despercebida. Tempo suficiente para um prato de prata esvoaçante aparecer com a sua bebida. Seus dedos finos alcançaram o corpo fino da taça aproximando-o até seu nariz. O perfume frutado da bebida fez suas bochechas corarem. O desejo tomou seus sentidos. Como uma vampira tentando esconder seu prazer, deixou escorrer aquele rubro néctar pela sua garganta. Tinto, o seu sangue esquentou e, mais uma vez com medo de ser notada, a moça revistou distraída o salão esperando não se deparar com olhos à sua espreita.

Para sua frustração momentânea, meu olhar há muito já estava fixo em cada movimento que ela fazia. Sem delongas, descobriu-me no meu intento mal sucedido de não ser notado. Disfarcei minha displicência. Ela, por educação, disfarçou também. Nós éramos dois novatos parceiros de dança que erraram o passo e tentavam se reestabelecer conforme as passadas da música. Por sorte, destino, ou seja lá o que for, Sinatra ressoava em nossos tímpanos, romântico, em gênero, número e grau.

Por alguns minutos, seguimos fingindo que nada tinha acontecido apesar de, a cada segundo, meu rabo de olho encontrar o dela. Seguimos dançando com os olhos, sem saber para onde ir além de ao encontro dos olhos do outro.

Em certo ponto desisti, como qualquer homem sensato, e a mirei de corpo inteiro. Ela se desconcertou mais ainda, mas, olhando para baixo ao fugir do meu olhar, sorriu de ladinho. Finalmente ela que havia cedido. Foi a minha recompensa por ter desistido de fugir. Foi o meu sorriso e a minha certeza.

Para dar o último solavanco na coragem, dei um gole no meu uísque, bati o copo na mesa para fazer pompa e levantei-me de súbito na direção da bela jovem.

À essa altura, ela já me esperava...