1 de outubro de 2011

Caneta mágica


Com uma caixa de papelão nos braços e um sorriso de janela, um homem acena. O ônibus para. O homem sobe pela porta de trás sem pagar. Vai para frente do ônibus recordando o texto programado e começa o discurso conhecido pelo inconsciente coletivo. Bom dia! Venho trazer para vocês a melhor caneta no mercado pelo melhor preço! E começa a falar sobre a qualidade do produto que oferecia ao público. Não era uma caneta qualquer. Suas linhas eram perfeitas. Sua tinta, de primeira, para todas as superfícies. E não manchava, embora marcasse para a vida até CD. Uau! Suspiraram discretos os olhos menos dispersos. E mais: tinha duas pontas, uma que escrevia fino e outra, grosso. Ou seja, servia para qualquer ocasião! Que se precisasse escrever grosso ou fino, lógico.

Sem dotes de orador, o homem sustentava-se confiante com aquele sorriso aberto, ventilado. E exaltava as inúmeras potencialidades da caneta que vendia: Ela escreve de cabeça para baixo e até mesmo debaixo d’água! Por que raios alguém precisaria escrever debaixo d’água? Certamente nenhum mergulhador estaria no ônibus às duas da tarde para a Central. Mas tudo bem. Afinal, quem contaria com uma caneta que escreve até debaixo d’água em plena segunda-feira? Era quase um instrumento do Divino, que sobre as águas andara. Só que, dessa vez, seria sob as águas. Isso sem contar que ela já havia sido anunciada na Hebe.

Sem ressalvas, o vendedor contagiou a breve viagem com o brilho atraente de uma novidade. Por um e noventa e nove era uma ilusão tão barata que quase comprei, só para não perder a oportunidade. De tão útil mais parecia um objeto vindo de uma fábula, que escrevia de tudo que é jeito, até com o mundo todo ao contrário. Resisti. Mantive-me inerte, ignorando aquela vontadezinha resiliente de consumir. Mas alguns passageiros não foram tão fortes e cederam, aventurando-se nas peripécias da caneta mágica.

Ao meu lado, um rapaz de uns vinte e poucos anos comprou logo três. Devia ser mergulhador, vai saber. Mal as havia recebido, já retirou uma delas do invólucro plástico que a protegia e começou a riscar levemente o seu dedão para testar a validade do discurso do vendedor. De longe, pude observar seu dedo marcado. Funcionava! – diziam seus olhos, como um mergulhador que avistou um tesouro num mar sem fim. Se ela riscava o dedo num ônibus movimentado, imagine o que não fará no repouso do mar? E de ponta cabeça!? E de quimeras mil seu castelo se ergueu.

Passado o surto de vendas, o vendedor voltou ao seu posto no início do ônibus e agradeceu a todos, desejando-nos uma boa viagem. Antes de partir, dirigiu-se para o motorista e, com uma caneta em riste: Essa é pra você assinar aquele contracheque abençoado! – e deixou-a com a cobradora. Naquele momento, ele já convencera quase todos dos poderes do seu produto – menos a cobradora.

O motorista negro abriu um sorriso branco cheio de dentes e agradeceu, deixando no ar a satisfação leve que todos respiramos. O ar de um mergulho de verão. Carregando a paz do dever cumprido, o vendedor desceu na parada próxima e seguiu seu rumo, espalhando pelos ônibus do Rio a magia de suas canetas, que tinham ponta grossa e fina, escreviam debaixo d’água e já haviam aparecido na Hebe.

No sinal vermelho, o motorista – com a testa suada mas as contas em dia – voltou-se para a “simpática” cobradora: Pode ficar com a caneta para você. Ainda amarga e com certo desprezo nas feições, ela não soube ao certo como agir. Desconfiou, segurou a caneta em seu cheiro de nova e, finalmente, optou por aceitá-la, deixando-se levar pelos seus contornos azuis. Foi inevitável. A gerência áspera do dinheiro deu lugar à graça de um presente. Aquela resistência mal-encarada ruiu frente aos encantos daquela caneta mágica. O motorista puxara sua companheira para o fundo daquele oceano onde todos nós nos refrescávamos. E naquele momento, naquele ônibus, foi cristalino: todos mergulharam no mesmo sonho da caneta que escrevia debaixo d’água.

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