12 de novembro de 2010

Lembrança do Carnaval

Ônibus lotado. O Cordão do Bola Preta já ia passar. Trânsito intransitável. Entram uma menina fantasiada de coelhinha e um cara alto de camisa laranja e bermuda verde. Os dois se espremem naquele calor humano.
A moça de compridas orelhas postiças se põe a reclamar de todo aquele aperto, do perigo de todos viajando em pé e de como aquilo tudo era um absurdo. Prostrado em sua frente o rapaz a ouvia, complacente. Com uma mão no bolso e a outra no apoio de ferro. O coletivo se mexia para lá e para cá enquanto a jovem advogada dos suados e oprimidos ali presentes seguia esbravejando.
Passados alguns minutos, gargalhadas. O rapaz trouxe a folia dos blocos para dentro do ônibus. Do seu bolso ele retirou uma cenoura e a levou até a boca da coelhinha:
- Vai uma cenourinha?

3 de outubro de 2010

Sentido?

Sem ti, dor.
Senti dor
Sem tido
Sentido.

Sugestão

Vão, homens! Interpretem
Minhas paixões aqui petrificadas
Com as suas.

Encontrem nelas razões
Outras que não as presas
Aos seus próprios passos.

6 de março de 2010

Sonho

A manhã de domingo reluz lá fora. No quarto, tenho a sensação de abrir os olhos, mas a neblina dos sonhos parece ainda não ter se dissipado. Sinto suas pernas entrelaçadas às minhas e o seu rosto fazendo do meu peito seu leito. Quase involuntariamente, ponho-me a acariciar seus fios dourados. Seu corpo se move preguiçoso ao tempo que sua mão delicada sobe pelo meu como uma brisa fresca numa noite de verão. Seus dedos acham minha barba “por fazer” e, movimentam-se, lentamente, entre os pêlos ásperos, para cima e para baixo. Em alguns segundos, sua mão pára. A dúvida entre sonho e realidade cansou suas pálpebras. Enquanto você se molda de novo nos meus braços, suavemente te beijo a testa e sussurro: É real, meu amor.

22 de janeiro de 2010

Ventiladores asiáticos

Dão asas ao vento que já voa sem asas. Pronto, é isso.

Há algum tempo, fala-se de arte moderna. Procura-se beleza em objetos que, por tão destoantes, são estranhos vistos juntos. Entende-se por arte um monte de papel picado dentro de um museu, como os feitos por crianças no jardim de infância. A arte moderna chama a atenção de nós, irrecuperáveis desatentos, aos contornos óbvios da vida. Talvez ela sublinhe aos desavisados as mais belas palavras de suas vidas cotidianas.
Leia como se estivesse apreciando uma pintura: saboreando-a com os olhos, descobrindo o gosto exótico que o guache de palavras proporciona. Leia como se estivesse apreciando uma música: tocando-a com os tímpanos, compreendendo a melodia lúdica nas entrelinhas. Não deixe, porém, que esta seja a maior arte do seu dia. Os maiores prazeres não estão na arte moderna, nem em qualquer outra. Afinal, queridas crianças no jardim de infância, “Aprecie com moderação” é só para os adultos.

15 de janeiro de 2010

Dos vinte e dois ao sentido perdido

Despertador. Seis horas. Olhos preguiçosos. Só mais um pouquinho. Cansaço. Levanta. Chinelos. Que dia é hoje mesmo? Oito passos. Chuveiro. Abre a torneira. Quarta-feira. Sabão. Tenho que pagar a conta de luz. Bucha. Espero que o fim de semana chegue logo. Enxágua. Acho que vou ver o filme novo do Woody Alen. Shampoo e Condicionador. 2 em 1. A Crítica diz que é bom. Fecha a torneira. Toalha. Desodorante. Perfume. Dez escovadas no cabelo. Doze nos dentes. Espelho sorridente. Galã de novela. Quatorze minutos. De volta ao quarto. Cuecas. Calça. Meias. Sapato. Maria, engraxa pra mim? Camisa. Pois não, doutor. Gravata. Que nó estranho! Cozinha. Café, torradas e jornal. Ah, esse meu país... Tá aqui o sapato, doutor. Obrigado, Maria. Dezesseis minutos. Tudo acaba em pizza. Paletó, celular e carteira. Chaves. Porta. Cuide-se, Maria! Elevador. Será que a avenida vai estar engarrafada hoje? Chave do carro na mão. Botão: Garagem. Batuque ansioso. Surpresa. Palma. Não peguei o maldito! Mosquito. Chave na ignição. Carrão. Nunca me deixou na mão! Embreagem, primeira, acelerador. Rampa. Botão. Portão abre. Botão. Portão fecha. Rua. Vinte quilômetros por hora. Aglomeração à vista. Que será isso? Para. Sai. Que aconteceu? Uma bicicleta e um carro. Amassou a lataria. Amassou a bicicleta. Bicicleta órfã. Apenas vinte e dois anos.